A entrevista de José Dirceu e as lacunas que o Estadão deixou passar

A entrevista de página inteira concedida por José Dirceu ao Estadão gerou repercussão imediata — não pelo conteúdo programático, recheado de projeções partidárias, mas por dois trechos específicos nos quais o ex-ministro tenta reescrever episódios centrais de sua trajetória penal.

No primeiro ponto, Dirceu afirma que, ao contrário de Jair Bolsonaro, “não fugiu”, tendo “cumprido pena”. A frase, porém, ignora aspectos fundamentais de sua situação jurídica. Embora Dirceu de fato tenha iniciado o cumprimento das penas impostas no julgamento do mensalão, parte dessas penas foi extinta por decisão do STF em 2016, por meio de indulto individual concedido pelo ministro Luís Roberto Barroso.
Além disso, em 2024, o ministro Gilmar Mendes anulou condenações de Dirceu na Lava Jato, o que encerrou processos ainda em curso. Críticos consideram que tais decisões foram decisivas para que o ex-ministro não permanecesse encarcerado — algo que Dirceu omite ao se comparar com Bolsonaro.

No segundo trecho relevante, Dirceu tenta reforçar sua versão sobre o mensalão contrapondo-se ao delator Roberto Jefferson. A comparação funciona mais como estratégia retórica do que como instrumento de esclarecimento. Jefferson, além de também ter sido beneficiado pelo indulto de 2016, voltou a ser preso em 2021 — desta vez no âmbito do inquérito das fake news — e acabou protagonizando o episódio da resistência armada à Polícia Federal em 2022, quando cumpria prisão domiciliar.
A evocação de Jefferson por Dirceu sugere que o ex-deputado, por seu histórico turbulento, não teria credibilidade para acusá-lo. Ocorre que as condenações do mensalão não se basearam exclusivamente na palavra de Jefferson, mas em um conjunto amplo de provas analisadas pelo STF.

Apesar das alegações de Dirceu, o repórter do Estadão não ignorou seu passado. Ainda assim, para parte do público, a entrevista pode soar mais suave do que o esperado diante da dimensão dos escândalos em que o ex-ministro esteve envolvido.
A comparação com a já famosa entrevista de Lula ao Jornal Nacional — quando William Bonner afirmou de antemão que o candidato “não tinha mais contas a prestar à Justiça” — reaparece no imaginário de críticos que veem uma predisposição de setores da imprensa a evitar confrontos diretos com figuras históricas do PT.

Ao tentar atualizar sua própria narrativa, Dirceu busca mais do que defender-se: tenta reposicionar-se politicamente em um momento em que o debate sobre corrupção e responsabilização penal ainda tensiona o ambiente público. Resta saber se os eleitores — e a imprensa — aceitarão essa reconstrução ou se continuarão revisitando um passado que o ex-ministro preferiria deixar para trás.

Compartilhe nas redes sociais

Bruno Rigacci

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Este site usa cookies para garantir que você tenha a melhor experiência em nosso site! ACEPTAR
Aviso de cookies