Moraes erra feio ao citar Stuart Mill

Durante o julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) que discute a responsabilização das plataformas digitais por conteúdos publicados por usuários, o ministro Alexandre de Moraes voltou a citar o filósofo John Stuart Mill como fundamento teórico para sua defesa da regulação das redes sociais. No entanto, especialistas e críticos acusam o ministro de distorcer os princípios centrais da obra do pensador britânico, especialmente no que diz respeito à liberdade de expressão.

A menção a Mill ocorreu em meio ao debate sobre a constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet, que exige decisão judicial para remoção de conteúdos supostamente lesivos a terceiros. A maioria formada até agora no STF tende a considerar o dispositivo inconstitucional, o que abriria caminho para uma regulação mais rígida e imediata por parte das plataformas — antes mesmo de decisão judicial.

Moraes citou passagens de Sobre a Liberdade para defender a tese de que, quando uma conduta impacta negativamente terceiros, a sociedade tem o direito de intervir. Para o ministro, a responsabilização das empresas por conteúdos nocivos é uma extensão legítima desse princípio:

“Tão logo que qualquer parte da conduta de alguém influencie de modo prejudicial os interesses de outros, a sociedade adquire jurisdição sobre tal conduta”, disse Moraes.

Entretanto, o PhD em Filosofia e colunista da Crusoé, Denny Xavier, afirmou que o ministro confundiu o capítulo sobre ações (capítulo IV) com o que trata da liberdade de opinião (capítulo II), promovendo uma leitura imprecisa da obra.

O trecho ignorado

De acordo com Xavier, Moraes omitiu uma frase crucial do mesmo parágrafo de Sobre a Liberdade:

“Em todos esses casos, deve haver perfeita liberdade, legal e social, para realizar a ação e suportar as consequências.”

A ausência desse trecho reforça, segundo o filósofo, que Mill não defende censura prévia, tampouco responsabilização automática sem o devido processo. Pelo contrário, sua filosofia seria fortemente contrária a qualquer tipo de controle antecipado sobre opiniões e ideias — ainda que estas sejam controversas ou ofensivas.

Mill também escreveu:

“O mal peculiar de silenciar a expressão de uma opinião é que isso rouba a raça humana […] Se a opinião estiver correta, eles são privados da oportunidade de trocar o erro pela verdade; se estiver errada, perdem […] a percepção mais clara e a impressão mais viva da verdade, produzidas por sua colisão com o erro.”

Distorção ou estratégia?

Essa não é a primeira vez que Alexandre de Moraes recorre a Sobre a Liberdade para embasar sua posição. Em episódios anteriores, como na tentativa de justificar a suspensão da plataforma X (ex-Twitter), o ministro já havia citado Mill — e, novamente, foi acusado de fazer uso seletivo e incompleto da filosofia liberal do século XIX.

A crítica central de juristas e estudiosos é que o STF estaria partindo de premissas legítimas — como a necessidade de combater desinformação e discurso de ódio —, mas com base em fundamentos teóricos distorcidos, o que poderia legitimar medidas que, na prática, resultem em censura prévia e restrição à liberdade de expressão.

Alerta dentro da própria Corte

Durante o mesmo julgamento, o ministro Edson Fachin externou preocupações sobre os rumos do STF ao ponderar que o “remédio” da regulação pode se transformar em “veneno”, caso ultrapasse os limites constitucionais:

“O problema é da dosimetria que vai se administrar nesse contexto. Se pesarmos muito nesses dois pratos dessa balança, poderemos ter efeitos mais danosos do que os atuais.”

Regulação ainda indefinida

O STF ainda não concluiu o julgamento, mas o tom adotado por diversos ministros, incluindo Flávio Dino, Zanin e o próprio Moraes, sugere que a Corte pretende reforçar a obrigação das plataformas de removerem conteúdo “nocivo” mesmo sem decisão judicial — o que, na prática, pode gerar moderação automática, preventiva e com viés de censura, segundo críticos.

O desafio será encontrar um modelo de regulação que preserve os direitos fundamentais, como o da liberdade de expressão, sem abrir brechas para abusos — algo que nem mesmo a Corte Suprema parece ter conseguido definir até agora.

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Bruno Rigacci

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