Espiões russos usavam o Brasil como mercado de identidades, aponta investigação

Uma investigação publicada nesta quarta-feira (21) pelo jornal The New York Times revelou um complexo esquema de espionagem internacional em que agentes russos de elite utilizaram o Brasil como “linha de montagem” para forjar identidades falsas e operar em outros países sob disfarce.

Segundo a apuração, os espiões chegavam ao Brasil com o objetivo de apagar seus rastros na Rússia e construir uma nova vida com nomes brasileiros. Para isso, abriam empresas, cultivavam amizades, envolviam-se em relacionamentos e, após consolidar a identidade fictícia, eram enviados para missões de espionagem ao redor do mundo.

Operação Leste: desmantelando a rede

Nos últimos três anos, a Polícia Federal brasileira atuou silenciosamente para desarticular a rede de espionagem. O trabalho, que contou com cooperação internacional e envolveu a análise de milhões de documentos, identificou ao menos nove agentes operando com documentos brasileiros falsos. A operação, batizada de “Operação Leste”, se estendeu por cerca de oito países e envolveu unidades de contrainteligência que também participaram das investigações sobre os atos golpistas atribuídos ao ex-presidente Jair Bolsonaro.

De acordo com o jornal americano, a ofensiva contra esses espiões começou a se intensificar após a invasão da Ucrânia pela Rússia, em 2022. Com isso, países que antes toleravam ou ignoravam a presença de agentes russos passaram a cooperar mais intensamente em investigações, como foi o caso do Brasil.

Alerta da CIA e o caso Victor Müller Ferreira

A trama começou a ruir em 2022, quando a CIA (Agência Central de Inteligência dos EUA) alertou a Polícia Federal sobre um homem com passaporte brasileiro tentando se infiltrar no Tribunal Penal Internacional, em Haia. O objetivo seria monitorar investigações sobre possíveis crimes de guerra cometidos por Vladimir Putin.

O suspeito se apresentava como Victor Müller Ferreira, mas foi identificado como Sergey Cherkasov, espião russo. A partir desse caso, autoridades brasileiras descobriram um padrão: os agentes usavam certidões de nascimento legítimas — frequentemente de pessoas mortas — para criar identidades brasileiras sem histórico de vida no país. Essas identidades “fantasmas” passavam despercebidas pelos sistemas convencionais.

Por que o Brasil?

O Brasil se mostrou um terreno fértil para a criação dessas identidades falsas por uma série de fatores: a ampla aceitação do passaporte brasileiro, a diversidade étnica que dificulta suspeitas e falhas estruturais no registro civil — especialmente em áreas rurais, onde não há exigência de comprovação médica para certidões de nascimento.

Com um registro de nascimento em mãos, os agentes conseguiam, em poucos passos, obter título de eleitor, CPF, documentos militares e passaporte — o suficiente para circular livremente por dezenas de países.

Perfis forjados com perfeição

Entre os casos mais impressionantes está o de Gerhard Daniel Campos Wittich, supostamente nascido no Rio de Janeiro em 1986. Na realidade, ele apareceu no Brasil apenas em 2015. Com domínio impecável do português, uma namorada brasileira e uma gráfica de impressões 3D em funcionamento, sua identidade parecia inquestionável.

No entanto, comportamentos peculiares levantaram suspeitas: evitava câmeras, não deixava o computador conectado à internet fora do horário de uso e ostentava um padrão de vida incompatível com os rendimentos da empresa. Sua verdadeira identidade: Artem Shmyrev, um espião russo que retornou à Rússia poucos dias antes de ser desmascarado pela PF.

Fim da linha para os infiltrados

Com a exposição dos esquemas, diversos espiões russos abandonaram o Brasil e retornaram à Rússia. Pelo menos dois deles foram presos, e outros tiveram suas operações encerradas por completo. A expectativa de especialistas é que, com as identidades comprometidas, esses agentes dificilmente voltarão a atuar no exterior.

A operação marca um raro exemplo de cooperação internacional de inteligência envolvendo o Brasil e demonstra que o país, ainda que historicamente neutro em muitas questões geopolíticas, está mais atento a ameaças de segurança global.

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Bruno Rigacci

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