“Governo Lula está aquém na demarcação de terras”, diz secretário do Cimi
A atuação do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva na demarcação das terras indígenas está sendo alvo de críticas de especialistas, que apontam um desempenho aquém das expectativas. De acordo com Luis Ventura Fernández, antropólogo e secretário-executivo do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), a atual gestão tem se mostrado insuficiente para garantir os direitos territoriais dos povos originários, comprometendo o cumprimento da Constituição de 1988.
Em entrevista à edição de ontem do CB.Poder, uma parceria entre o Correio Braziliense e a TV Brasília, Fernández destacou a gravidade da situação, ressaltando que a Lei 14.701, aprovada em dezembro de 2023, que estabelece o Marco Temporal para a demarcação das terras indígenas, é “inconstitucional” e representa um retrocesso significativo na proteção dos direitos indígenas. Segundo ele, essa legislação enfraquece a garantia das terras tradicionais dos povos originários, colocando em risco não apenas os territórios, mas também as vidas desses grupos.
A Pauta Indígena no Brasil: Avanços e Retrocessos
O antropólogo vê o cenário atual como crítico para a questão indígena no Brasil. Ele cita o Acampamento Terra Livre, um evento anual de mobilização indígena, que neste ano chega à sua 21ª edição em um momento especialmente sensível. Fernández lamenta que, após 36 anos da promulgação da Constituição de 1988, as garantias previstas no artigo 231 — que reconhece os direitos dos povos indígenas às suas terras — estejam sendo constantemente desafiadas.
“O governo federal tem avançado de forma muito tímida, e em vários casos a ação do Congresso e do Supremo Tribunal Federal (STF) tem colaborado para a redução de direitos dos povos indígenas. A Lei 14.701 é um exemplo claro disso”, afirmou Fernández, ressaltando que a ideia do Marco Temporal, defendida pela nova legislação, contraria a própria essência do artigo 231 da Constituição, que reconhece os direitos originários dos povos indígenas — ou seja, direitos que existiam antes da formação do Estado brasileiro.
O Papel do Congresso e a Ameaça aos Direitos Indígenas
A crítica também recai sobre o comportamento do Congresso Nacional, que, segundo o antropólogo, tem adotado uma postura hostil em relação aos direitos indígenas. Fernández argumenta que o Parlamento brasileiro, com suas ligações históricas com setores do agronegócio e da mineração, representa os interesses de grandes grupos econômicos, frequentemente em detrimento das demandas e necessidades dos povos originários.
“O Congresso brasileiro tem sido extremamente reacionário no que diz respeito a direitos fundamentais. Ele trabalha contra a Constituição de 1988 e, agora, avançou com a aprovação do PL 14.701, ignorando a decisão do STF que declarou o Marco Temporal inconstitucional”, destacou o antropólogo. A falta de uma reação mais enérgica por parte do STF também é vista com preocupação. Segundo ele, a Câmara de Conciliação criada pelo ministro Gilmar Mendes no STF não possui legitimidade para negociar direitos que são, por definição, inegociáveis.
A Câmara de Conciliação: A Negociação de Direitos Fundamentais
Fernández foi enfático ao criticar a Câmara de Conciliação, criada pelo STF para tentar buscar uma solução intermediária sobre a aplicação do Marco Temporal. Para ele, “direitos humanos não se negociam”, e qualquer tentativa de conciliar ou modular esses direitos apenas enfraquece a luta dos povos indígenas. Ele argumenta que a intenção dessa conciliação é fazer com que os indígenas “abram mão de parte de seus direitos” em troca da rejeição do Marco Temporal, o que, segundo ele, é uma verdadeira ameaça à integridade dos territórios indígenas.
“Não se pode negociar direitos fundamentais. Eles precisam ser garantidos, sem condicionamentos. O que o STF está tentando fazer é possibilitar um acordo que prejudica diretamente os povos indígenas”, completou Fernández.
A Atuação do Governo Lula na Demarcação de Terras Indígenas
Apesar de reconhecer os avanços feitos pelo governo de Lula III em comparação com a gestão anterior de Jair Bolsonaro, Fernández lamenta que o atual governo ainda esteja aquém do necessário para garantir uma política efetiva de demarcação de terras indígenas. Ele aponta que, embora tenha ocorrido a criação de grupos de trabalho e a assinatura de algumas portarias, o número de terras homologadas é muito abaixo das necessidades. Em dois anos de governo, apenas 13 territórios foram homologados, um número insuficiente diante do passivo existente, que ainda soma 850 terras indígenas aguardando demarcação.
“Em relação aos governos anteriores de Lula, temos um cenário bem mais desfavorável. Antes, a média era de 10 homologações por ano, e o governo atual não está conseguindo nem chegar perto disso”, comentou o antropólogo. Ele reforça que, apesar da criação do Ministério dos Povos Indígenas e de esforços para reestruturar a Funai, o governo ainda não deu respostas suficientes às necessidades de proteção e demarcação dos territórios indígenas.
Expectativas e Desafios Futuros
Para Fernández, o atual governo deveria ter avançado muito mais na implementação de políticas públicas voltadas para os povos indígenas, especialmente na área de demarcação de terras. “Esperávamos que, ao chegarmos no terceiro ano de governo, a situação fosse bem mais avançada. Porém, estamos muito distantes do que é necessário”, conclui.
O cenário é delicado, e os povos indígenas continuam a lutar por seus direitos territoriais em um momento crucial da história política do Brasil. O caminho à frente é incerto, e os desafios para garantir a integridade de seus territórios e a proteção de suas culturas permanecem grandes, exigindo um compromisso mais firme do governo e das instituições brasileiras com os direitos dos povos originários.