Campanha da Havaianas expõe choque entre cultura popular e agendas corporativas

A recente polêmica envolvendo a campanha publicitária da Havaianas revelou algo que vai muito além de uma escolha criativa mal recebida. O episódio expôs uma tensão crescente entre marcas consolidadas, decisões corporativas influenciadas por agendas ideológicas e um consumidor brasileiro cada vez menos tolerante a discursos percebidos como imposições culturais ou políticas.

No centro da controvérsia está a Alpargatas, controladora da marca, e uma estratégia de comunicação que, segundo críticos, ignorou símbolos, tradições e até superstições profundamente enraizadas na cultura nacional.

A campanha questionada sugeria que o brasileiro não deveria “começar o ano com o pé direito” — uma referência direta a uma crença popular antiga, presente em diferentes regiões do país. Para muitos consumidores, a mensagem soou como provocação gratuita; para outros, como um gesto ideológico disfarçado de criatividade publicitária. A reação foi imediata: críticas intensas nas redes sociais, boicotes espontâneos e um debate que rapidamente ultrapassou o universo do marketing.

Quando a publicidade ignora o repertório cultural

Marcas como a Havaianas não vendem apenas produtos, mas símbolos. Durante décadas, o tradicional chinelo de borracha esteve associado à informalidade brasileira, ao cotidiano popular, ao humor e à identidade nacional. Mexer nesse imaginário exige cautela.

Superstições podem parecer irrelevantes para executivos ou departamentos criativos sofisticados, mas fazem parte da vivência real de milhões de brasileiros. Cores usadas no réveillon, rituais de virada de ano e pequenos gestos simbólicos não são meros detalhes folclóricos — são elementos de pertencimento cultural. Ao subestimá-los, a marca corre o risco de parecer desconectada do público que a sustenta.

Analistas críticos da campanha apontam que o erro não esteve apenas no conceito criativo, mas na falha de leitura do contexto social e cultural.

Liderança corporativa sob escrutínio

Outro ponto que ganhou destaque foi a figura do CEO da Alpargatas, Liel Miranda. Críticos resgataram episódios de sua trajetória à frente da Mondelez, quando campanhas consideradas ideológicas também provocaram forte rejeição do público, resultando em pedidos públicos de desculpas e desgaste de imagem.

A repetição de estratégias semelhantes levanta um questionamento relevante: trata-se de equívocos pontuais ou de uma visão deliberada sobre o papel das marcas na chamada “guerra cultural”? Para parte do público, há um padrão claro de tentativa de inserir pautas políticas ou comportamentais em produtos de consumo popular — uma estratégia que, em vez de engajar, acaba afastando consumidores.

Ideologia, consumo e o limite da imposição

O caso da Havaianas se soma a outros episódios recentes no mercado global. Marcas como Budweiser e Disney também enfrentaram reações negativas após associarem seus produtos a agendas identitárias que não dialogaram com seu público tradicional.

Em comum, esses episódios não rejeitam a diversidade em si, mas a percepção de imposição — a sensação de que o consumidor está sendo educado, corrigido ou direcionado politicamente. O consumo, por definição, é uma escolha. Quando a marca parece dizer ao público o que ele deve pensar ou valorizar, essa relação se fragiliza.

Impactos econômicos e riscos jurídicos

Além do debate cultural, há consequências práticas. A Havaianas conta com milhares de franquias no Brasil, empregando diretamente um grande número de trabalhadores e sustentando uma extensa cadeia produtiva. Uma eventual queda nas vendas afeta lojistas, funcionários, fornecedores e parceiros.

Especialistas apontam que, caso sejam comprovados prejuízos financeiros diretamente ligados à campanha, franqueados podem buscar reparação judicial por perdas comerciais ou quebra de expectativas contratuais. O cenário também abre espaço para substituição da marca em pontos de venda, beneficiando concorrentes mais alinhados ao sentimento popular.

Concorrência observa oportunidade

Enquanto a Havaianas enfrenta desgaste, concorrentes como Ipanema, Rider e outras marcas do setor observam uma oportunidade estratégica. Campanhas que reforçam símbolos nacionais, simplicidade e identificação direta com o consumidor médio historicamente encontram boa receptividade no Brasil.

O uso de figuras populares — como atletas ou artistas amplamente reconhecidos — reforça essa proximidade cultural. Curiosamente, campanhas antigas da própria Havaianas já demonstraram que é possível brincar com símbolos culturais sem gerar rejeição. A diferença está no tom: humor compartilhado não é o mesmo que provocação ideológica.

Mais que um erro de marketing

Reduzir o episódio a um simples erro publicitário é simplificar demais. O caso revela um conflito maior entre elites corporativas globalizadas e consumidores locais que se sentem ignorados. Também evidencia os riscos de decisões tomadas em bolhas ideológicas, distantes da realidade cultural do público final.

O consumidor brasileiro mudou. Ele não é passivo, reage rapidamente e não aceita facilmente discursos que considera desrespeitosos ou alheios à sua identidade. Redes sociais amplificam reações, boicotes se organizam com velocidade e marcas antes intocáveis passam a ser questionadas.

A crise da Havaianas serve como alerta ao mercado. Em um ambiente de polarização cultural, marcas precisam escolher com cuidado seus posicionamentos. Ignorar tradições, símbolos e valores populares pode custar caro — não apenas em vendas, mas em reputação construída ao longo de décadas.

Se a Alpargatas conseguirá reverter o desgaste ainda é incerto. O episódio, porém, já se consolida como um exemplo emblemático de quando a publicidade deixa de unir e passa a dividir. Em um país onde cultura e consumo caminham juntos, romper esse elo pode ser um erro difícil de corrigir.

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Bruno Rigacci

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